sábado, 8 de agosto de 2015



Sabadão discaço - ALL THINGS MUST PASS

o Paul McCartney e o George Martin sintetizaram música clássica e jazz (via Debussy e via Bacharat e Bernstein). a carreira solo do John Lennon veio mostrar que a dele era mais blues e folk, o ré maior e o sol com sétima. o Ringo é o Ringo. quem sobra? George Harrison cai de paraquedas no meio dessa história toda e é responsável por inventar uma linguagem melódica diferente, eminentemente guitarrística.

foi uma jornada longa, de narigudo guitarrista de apoio a compositor de something, mas tanto a perspectiva histórica quanto o doc do Scorsese nos livram de entrar nesse mérito. talvez seja melhor descrever um pouco dessa linguagem.

um começo tão bom quanto qualquer outro é falar do alcance vocal limitado, que sugere que, em vez de grandes saltos intervalares, dá pra fazer mais com menos, talvez simplesmente subindo um semitom numa das notas do acorde. é possível que as incursões pela música indiana e seus microtons tenham sedimentado essa tendência. para verificar isso, basta lembrarmos dos riffs de abertura de I want to tell you e Wah-wah.

outro começo é falar da guitarra em si. um som limpo, alterado por um fuzz ou por um leslie, usando slides e dedilhados para atacar notas específicas, no mais das vezes deixando os acordes cheios pro teclado ou pra outra guitarra.

outro começo seria mencionar colaboradores, Dylan, Clapton, Preston, Ringo, os Phils Spector e Collins e por aí vai.

não precisamos falar só de técnica, outros começos dariam certo também. a gente poderia falar das tensões internas dos Beatles, a gente poderia falar da esposa perdida, poderia falar das músicas a que banda não conseguia dar vazão (um problema comum a todos eles) e que o George acabava entregando pra outros artistas gravarem. a gente poderia falar de tudo isso e ainda não daria conta de relatar com precisão a explosão criativa que foi o All things must pass.

da extensão do disco, 1 hora e 46 minutos, à quantidade de faixas, 21, à megalomania sonora da wall of sound que o Phil Spector criou (cinco guitarristas base?), não é difícil detectar que havia muita coisa represada e que o George queria expressar. um senso ritualístico, de purga mesmo, pervade o disco.

as letras abordam temas muito abstratos, com um certo viés filosófico. não é fácil tratar de maneira tão pessoal temas como amor, piedade, integridade, e não soar nem condescendente nem pretensioso. é incrível, essa habilidade de cantar realidades grandiosas sem cair no ridículo só encontra paralelo num Neil Young, num Milton Nascimento.

a pessoalidade que se sente ao ouvir o disco é reforçada pela história de que o processo de gravação teve de ser interrompido algumas vezes, porque o George Harrison teve de viajar para ver a mãe, que estava com câncer. ou seja, ao mérito musical indiscutível, soma-se uma carga emocional forte. é só assistir o documentário aí de cima para perceber que o George é de uma grandeza moral tão grande que as histórias que o envolvem ganham essa atmosfera de pessoalidade e de cuidado.

é isso. dos maiores que o roque produziu, All things must pass é, pra além da façanha técnica, um dos discos feito com mais amor e com uma visão mais clara do que nos move e do que nos atrapalha.

Highlights:

I'd have you anytime
Behind that locked door
Beware of darkness
All things must pass

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